Crônicas de Helgard: Capítulo 14

Entrando na Cidade-Estado, Ansgar!

 

 

 

Ano 650 da Era Solariana. Arins(1º mês), Dia 6, 14:27 am

 

 

Um vento frio vindo do oeste agitou o manto de penas de corvo de Karl e bagunçou os cabelos da jovem ruiva sentada à sua frente, movendo-se de forma inquieta no dorso do lobo mutante. Seguiam pela margem do rio espelhado Rhiannon. No horizonte era visível a silhueta da cidade e mais ao norte, havia um porto com embarcações, com velas das mais variadas cores.

Karl olhava estupefato para embarcações.

― São galés comerciantes ― explicou a jovem ruiva notando o olhar de interesse de Karl. ― Pela pintura nas embarcações e velas são Milesianos das Ilhas Contente. Um povo que vive mais no mar do que na terra, foi o que minha amiga falou.

― Ilhas Contente?

― O Rhiannon cruza toda extensão das Terras Altas, desaguando no mar ocidental. Lá, vários quilômetros mar adentro, se encontra as ilhas Contente. Ah! Se um dia encontrar um Milesiano, nunca, nunca, fale sobre os Bórianos!

― Até poucos segundos atrás não havia esse risco ― disse ele. ― Mas já que os mencionou. O que é um Bóriano?

― Bórianos é um povo que vive nas ilhas Marfim, mais ao norte do mar oriental. Eles têm uma longa e antiga rivalidade com os Milesiano. Vivem brigando pelo título de melhores construtores de galés, ou algo assim, não tenho certeza.

― De acordo com nossa conversa anterior. Você nunca deixou Ansgar. Mas fala como se tivesse navegado até essas ilhas.

― Há muitas formas de conhecer um lugar sem nunca ter estado nele ― afirmou Brienne, com nariz empinado. ― Tenho uma amiga que é uma Barda vinda das terras baixas. Ela é conhecedora de mil versos e mil mistérios.

Karl agora sabia qual era a fonte de informação da jovem ruiva.

Brienne abrumou-se no dorso do cachorro mutante e encostou-se confortavelmente no peito de Karl.

Seus lábios se enrolaram em um sorriso satisfeito.

Ao longo da estrada acabou se arrependendo de ter viajado no dorso do lobo mutante. Por onde passavam viajantes corriam apavorados, animais relinchavam, e exploradores sacavam suas armas, mas logo ao ver os dois no dorso da besta mutante soltavam suspiros aliviados.

― Veja a cara de medo desses exploradores metidos a besta! ― ela gargalhava toda vez que um grupo de exploradores se assustava. ― Seria interessante fazer Billy correr atrás desses patetas, assustando-os até a morte!

Ela estava gostando da situação.

― Apesar de ser uma exploradora, não parece nutrir simpatia por eles.

― Não gosto. E sabe por quê? ― ergueu a cabeça, olhando diretamente para Karl. Havia raiva nos olhos da garota. ― Por que uma parte deles não passa de aproveitadores, sem vergonhas que te roubarão na primeira oportunidade! Bandidos transvestidos de exploradores, isso sim que eles são. Manchão o nome de exploradores descentes, que arriscam suas vidas para explorar ruínas e descobrir os mistérios antigos.

Pelo tom de raiva em sua voz, Karl podia deduzir que a garota havia participado de um grupo e havia sido traída.

Tão jovem e parece ter passado por tanta coisa…

― E você? ― Karl perguntou.

― Obviamente, uma exploradora decente ― desenhou um sorriso astuto para ele e acrescentou: ― Não se preocupe, nunca enganaria ou prejudicaria meu querido.

Karl riu e não se incomodou de repreender a jovem ruiva.

Ao longo do caminho ela vinha o importunando com as palavras “querido” e “amante”, entre outras palavras carinhosas – para Karl era óbvio que a pequena raposa astuta queria criar um lanço romântico entre eles.

Sinto que essa pequena raposa vai me trazer muitas dores de cabeça, pensou Karl sentindo o calor corporal da garota usando seu peito como um encosto de cadeira. Pergunto-me como posso realizar seus sonhos, enquanto eu nem tenho ideia de como viver nesse mundo. Bom, não faz muita diferença. Não importa o mundo, dinheiro e poder, são os princípios básicos. Tendo esse dois em seu mais verdadeiro significado poderei realizar qualquer desejo.

Apesar de seguirem lentamente em frente, logo chegaram até as muralhas. Flanqueando os portões de Ansgar, adornando as muralhas, havia um estandarte vermelho que chegava ao chão, bordado com o simbolo de um falcão negro segurando uma espada, tremulando ao vento.

Na entrada havia soldados uniformizados, grossos casacos sobre cota de malha e cabeças protegidas por elmos emplumados, empunhando longas lanças.

Em alguns aspectos Karl notou que aquele mundo era tecnologicamente avançado, em outros era como o período da idade medieval.

Mas o que lhe causava um arrepio de assombro era o gigante de aço com dez metros de altura, parado ao lado do portão, segurando com as duas mãos uma espada com a ponta da lâmina gravado na terra. Na área do peito – onde está localizada a cabine do piloto -, estava pintada com o mesmo brasão encontrado no estandarte que adornava as muralhas da cidade – um falcão negro segurando uma espada.

Uma coisa é você ver as carcaças, mas vê-los operantes é sensacional! Pensou Karl emocionado vendo os gigantes cavaleiros blindados.

Na conversa que teve com Brienne, descobriu que Ansgar era uma cidade fronteiriça da Federação Solariana. Uma grande potência militar das terras altas que vem expandindo seu território ao longo dos anos.

― Lembre-se, faça conforme planejamos, não entre em pânico e não se comporte de forma suspeita.

Brienne saltou do dorso do lobo escamado, aterrissando no chão com destreza.

― Tem certeza que será tão fácil assim? ― indagou.

― Sim ― respondeu ela com confiança. ― Desde que faça o que mandei, entraremos sem qualquer problema. Claro, se você tentar entrar na cidade montada nesse… Lobo… Vão desconfiar da história.

Karl desmontou Billy e o guardou no espaço dimensional do dispositivo.

Brienne tirou o pingente com a placa de ferro e colou em seu pescoço, deixando a vista. Ela agarrou o braço de Karl.

― Realmente é necessário andarmos dessa forma?

― Claro! ― respondeu ela. ― Pelo menos para mim.

Os dois seguiram em direção ao portão.

Na entrada de Ansgar havia um fila de carroças e vagões estavam sendo inspecionadas pelos soldados. Uma pequena fila se formava na frente do posto de controle, aonde havia uma mesa de madeira com um soldado de cabelos grisalhos vestindo um sobretudo. No braço direito havia uma braçadeira vermelha bordado com duas penas cruzadas e uma caveira.

Pelas insígnias e braçadeira, Karl deduziu que fosse um oficial.

Sobre a mesa estava um grande livro de registros, aonde ele calmamente anotava com a caneta o nome de cada visitante e recolhia a taxa de entrada.

― Você passa por esse procedimento todos os dias?

― Não. Moradores e membros da guilda dos exploradores tem passe livre. Tudo que preciso fazer é apenas mostrar a placa de identificação. O posto de controle é mais para viajantes e comerciantes, uma fonte de renda do governo central.

A fila prosseguiu rapidamente e logo estavam diante do soldado de cabelo grisalho.

Ele olhou rapidamente para os dois, notando a placa de ferro de Brienne a ignorou, concentrando-se em Karl.

― Qual seu nome?

― Karl de Lug ― respondeu. ― Sou um mercenário.

O soldado escreveu no livro de registro.

― Reino de Lug das terras baixas ― resmungou o soldado, fazendo uma careta. ― Está muito longe de casa… Qual seu proposito em Ansgar?

― Trabalho. Talvez me registre como Explorador, já que por aqui o que não falta é ruínas para explorar.

― Certo ― disse o soldado, num tom de voz desinteressado. ― Pague 5 Drac de bronze.

Nesse momento Brienne tirou um saco preso as correias do cinturão e retirou, com certa relutância, cinco moedas e colocou sob a mesa.

O soldado recolheu as moedas e acenou com a mão.

― Podem ir.

Os dois passaram pelos soldados e o imenso portão leste, revelando uma larga calçada de pedra ladeada por casas de pedra e madeira de dois andares, com chaminés vomitando fumaça.

― Vê aquela praça? ― disse Brienne apontando para larga calçada de pedra terminando em uma ampla praça, repleto de barracas vendendo os mais diversos produtos. ― É chamada de Praça valente. Lá se pode encontrado de tudo.

Conforme percorriam a calçada de pedra lentamente, Karl viu uma grande catedral de quatro torres altas.

― Catedral Sagrada ― disse Brienne. ― Lá vive os sacerdotes dos deuses. E aonde você pode adquirir uma classe… Se tiver dinheiro suficiente, claro.

Após explicar sobre alguns pontos das lojas próximas, ao invés de seguir até a praça valente, embrenharam-se por apinhadas ruelas em mal estado, passando por casas e barracas ao longo de cada ruela, por lojas discretas, padarias, armazéns, bordeis, tavernas, ruela agitadas pelo vai e vem de pessoas das mais variadas etnias.

Chegaram até uma grande praça menor aonde a cacofonia dos berros de vendedores ambulantes oferecendo seus mais diversos produtos e serviços, juntava-se com a barulheira da multidão reinante ao redor.

― Espeto de carne de rato mutante! Baratinho! Apenas 3 Drac de bronze!

― Reparo equipamentos de couro! Ficaram novinhos em folha!

― Pomadas de cura! Para hematomas e arranhões! Apenas 50 Drac de bronze! Quem vai levar?

― Por aqui! ― gritou Brienne, puxando o braço de Karl. ― Logo chegaremos à minha casa, depois de verificar… Bem, depois veremos direito o que fazer.

Entraram por uma viela estreita, escura e suja, terminando em uma área cheia de edifícios em ruínas. O ar cheirava mal, como merda e urina. Logo chegaram a uma casinha de madeira e alvenaria, rodeado por uma cerca de tábuas.

Entre os escombros de edifícios era possível ver crianças e adultos maltrapilhos, encarando-o com uma mistura de medo e curiosidade. Quando eles estavam preste a chegar à casa da jovem ruiva, de um dos becos, surgiu um grupo de homens mal encarados. Eram cinco no total, vestindo gibão de peles e levando em mão o que parecia um clube rústico de madeira.

Karl sentiu a mão de Brienne apertar fortemente seu braço, havia medo em seus belos olhos azul-esverdeado.

― Quem eles são? ― perguntou em um sussurro.

― Um bando de criminosos… Tenho um pequeno desentendimento com o chefe deles… É uma história complicada…

Brienne explicou que as periferias era território de uma organização criminosa chamada de Sombras de Guinevere. Seus membros eram assaltantes, assassinos, ladrões de ruas e vigaristas. Antes não ousavam mexer com ela por causa de seu pai, que era um notório ladino. Mas desde a morte de seu pai, se tornaram mais ousados, procurando uma oportunidade de pega-la.

E, em seu desespero, acabou caindo na armadilha no momento que pegou dinheiro emprestado com essa organização.

E a quantia que ela devia não era nada pequena.

Entre os cinco, um homem entre seus 30 a 33 anos, deu um passo para frente. Ele vestia um gibão de couro surrado e a cabeça coberta por um gorro de lã. Suas mãos repousavam sobre o cabo de uma faca no cinturão.

Ao se aproximar ele desenhou um largo sorriso, mostrando que lhe faltava alguns dentes – o que tornava sua cara marcada por cicatrizes ainda mais sinistra.

Seu nome era Ryder.

― Ora, ora, ora, pessoal veja quem encontramos! ― disse Ryder num tom de voz desagradável. ― Uma ratinha que pensávamos que havia fugido! Está querendo passar a pena em nossa organização? Pessoal não acha que devemos ensinar-lhe uma lição?

O “pessoal” gritaram um animado sim, enquanto lambiam seus lábios em antecipação. Era bastante claro as intenções do grupo pelos olhares depravados em direção da jovem ruiva.

E aqui vamos nós ao clichê encontro com os caras maus, pensou Karl ironicamente. Sabia que esse momento chegaria mais cedo ou tarde. A questão é como resolver o problema atual?

Vendo o ar de violência que o grupo exalava não precisou pensar muito em como resolver o problema atual.

Karl afastou Brienne para trás e deu um passo para frente, ficando entre ela e os bandidos. Seus olhos pretos aos poucos ganharam um brilho frio. Afiado como duas espadas.

― Sugiro, para seu próprio bem, que dê meia volta e nunca mais incomode ela! ― Karl falou num tom frio.

Os cinco criminosos entreolharam-se e gargalharam.

― Vejam pessoal “para seu próprio bem” disse ele! ― Ryder zombou com um olhar desdenhoso. ― Não tente bancar o herói e caia fora!

― Bancar o herói? ― Karl zombou e puxou Brienne para frente, envolvendo a cintura delgada dela com sua mão. ― Não me entenda mal, estou apenas protegendo minha garota de um bando de ladrões sem-vergonha!

Ao ouvir as palavras “minha garota” e sentir a mão forte e firme de Karl em sua cintura, o coração de Brienne acelerou. As maçãs de seu rosto adquiriu um leve tom avermelhado.

― Oh, “sua garota” ele disse pessoal ― Ryder zombou novamente enquanto andava lentamente para frente, brincando com a faca na mão. ― Pessoal vamos ensinar uma lição para esse retardado! Não se preocupe, não vamos matá-lo. Vou deixa-lo vivo para assistir “sua garota” sendo montada por nós irmão enquanto grita por sua ajuda!

Os quatros bandidos ao ouvir as palavras viciosas de Ryder, o grandalhão que segurava o clube rústico de madeira correu para frente. Ele atacou com um golpe vicioso – uma barra horizontal visando acertar sua cabeça pelo lado esquerdo.

― Karl cuidado! ― Brienne gritou.

Karl apertou com mais força a cintura da garota ruiva para tranquilizará e não fez nada. Não moveu um centímetro se quer para defender-se. Ficou lá parado olhando friamente para seu atacante.

O clube de madeira acertou o pescoço de Karl, provocando um som surdo, acompanhado pelos risos viciosos dos criminosos. No entanto, logo os risos pararam, sendo substituído por um completo silêncio

Karl não caiu para trás com a cabeça toda ensanguentada como haviam esperado. Nem se quer moveu um único centímetro. Estava lá parado, olhando todos friamente, com um sorriso de gelar o sangue.

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